quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Uma calma manhã do final de Julho


Uma calma manhã do final de Julho, sem a agressividade de um calor infelizmente comum para a época do ano.

Mais um “ferry flight” rotineiro, despreocupado, penso para mim, e após a habitual “check-list” é tempo de rolar pela pista para a descolagem.

Subitamente, após descolar, sem qualquer aviso, a aeronave perde toda a sustentação, como se a sua vontade de voar simplesmente desaparecesse por magia, finco-me nos comandos, determinado a evitar a queda a todo o custo; mas é inevitável. Vamos acabar no chão.

Após as longas ânsias que percorrem todo o pensamento numa questão de alguns segundos, enquanto o asfalto corre debaixo de mim, quando finalmente paro, tenho já ao meu lado, dois pilotos tentando perceber se estou bem

- Consegues levantar-te? Pergunta-me um deles.

Uma das pernas não colabora, com dores que apertam intensamente, não deixando quase espaço para pensar em mais nada, com ajuda lá me consigo sentar no “rail” iniciando a série de contactos inevitáveis neste tipo de situação.

A preciosa ajuda que me assistiu, permanece ao meu lado, peço-lhe que continue em direcção ao seu destino, mas só com a chegada da ambulância é que abandona o local, agradeço a ajuda e apoio que fizeram toda a diferença para mim. O meu obrigado.

Sou conduzido até ao interior da ambulância, colocado na maca, sendo a perna imobilizada.

Chegam as autoridades, para realizar o auto, explico detalhadamente o sucedido, a súbita perda de aderência sem motivo aparente, e que terá uma causa que tem que ser determinada.

A resposta chega em tom enfático – “Sr. Condutor, não detectamos nenhuns vestígios de alguma substância estranha no pavimento, afirmando que apenas verificou um pequeno indício de água no pavimento”.

O que contraponho de imediato, sem obter resposta.

Já a caminho do hospital, os bombeiros confidenciam-me que é o habitual neste tipo de situações – Assim a culpa fica sempre com o condutor, libertando outras entidades de assumirem as devidas responsabilidades.

Chegada ao hospital. Breve espera na maca, segue-se a ida ao RX, já com a perna a gritar atenção para si, a equipe médica analisa os “danos” na perna; fractura no planto tibial - Terá que ser operado dentro de dois dias.

Informo a minha mulher, não é fácil, dar notícias destas à família, rapidamente, acorrem ao hospital, preocupados, tento transmitir calma, sinto a sua tristeza, tenho pena de os fazer sentir assim por minha causa.

É colocado gesso, sou transferido para o serviço de ortopedia. Muitos pensamentos correm rapidamente, fugidios, enquanto o tempo espera e teima em não passar.

Numerosos colegas da empresa onde trabalho, entram em contacto comigo, de modo a saber como estou, dando apoio e atenção, com muito necessária energia positiva.

Chega o dia da operação e com anestesia local, a minha perna é intervencionada com atenção e cuidado, oiço um berbequim a aparafusar, e lembro-me por breves momentos da oficina do famoso “Gepeto” a reparar as suas marionetes de madeira.

Decorria assim a cirurgia, enquanto calmamente falava com a equipa médica que me assistia, enquanto procurava saber se era bastante comum a existência de acidentados de moto.

- Não; acidentados de moto não são muito comuns de chegarem até nós. Acabam por morrer antes de chegarem aqui; dos velocípedes ainda chegam até cá – é a resposta que recebo.

Minuto seguinte, e já estávamos a falar de restaurantes, e respectivos “reviews” e opiniões, a vida no hospital é mesmo assim, tal frente de batalha, feita de muitas realidades, em que se têm que viver pelo meio.

Até a Cinderela e o príncipe encantado são reais pelo hospital. Mesmo. E nem têm consciência do que estão a viver. Especial e único, numa magia que pensamos já não existir. Felicidades para eles!!

À medida que os dias foram passando, depois de alguma luta contra as dores, lá finalmente chegou o dia da alta, e o regresso a casa, para uma recuperação longa, em pleno verão, sem sair praticamente de casa, além de consultas de rotina e pouco mais.

Deslocar-se no interior de casa obrigou a uma nova aprendizagem, além de não ser nada fácil lidar com o facto de não poder realizar tarefas, dadas como adquiridas até a essa altura.

A recuperação chega a uma nova fase, com a fisioterapia, logo na primeira sessão, ao meu lado, na mais pura das coincidências, fica um veterano piloto que já conheço.

Apesar de um acidente grave, luta em recuperar contra as dores, de modo a ocupar o seu lugar na sua aeronave.

Fui conhecendo por lá, todos aqueles que foram sofreram os mais diversos tipos de acidente, das mais diversas situações, num ambiente de simpatia, difícil de imaginar, dado o local.

Não sei se terei a oportunidade de voltar aos “ferry flights” sinceramente. Só o tempo o dirá.

A vantagem da incerteza é que dentro de si cabe literalmente tudo.

Sem comentários:

Enviar um comentário