Uma calma manhã do final
de Julho, sem a agressividade de um calor infelizmente comum para a época do
ano.
Mais um “ferry flight” rotineiro,
despreocupado, penso para mim, e após a habitual “check-list” é tempo de rolar
pela pista para a descolagem.
Subitamente, após
descolar, sem qualquer aviso, a aeronave perde toda a sustentação, como se a
sua vontade de voar simplesmente desaparecesse por magia, finco-me nos
comandos, determinado a evitar a queda a todo o custo; mas é inevitável. Vamos
acabar no chão.
Após as longas ânsias que
percorrem todo o pensamento numa questão de alguns segundos, enquanto o asfalto
corre debaixo de mim, quando finalmente paro, tenho já ao meu lado, dois
pilotos tentando perceber se estou bem
- Consegues levantar-te?
Pergunta-me um deles.
Uma das pernas não
colabora, com dores que apertam intensamente, não deixando quase espaço para
pensar em mais nada, com ajuda lá me consigo sentar no “rail” iniciando a série
de contactos inevitáveis neste tipo de situação.
A preciosa ajuda que me
assistiu, permanece ao meu lado, peço-lhe que continue em direcção ao seu
destino, mas só com a chegada da ambulância é que abandona o local, agradeço a
ajuda e apoio que fizeram toda a diferença para mim. O meu obrigado.
Sou conduzido até ao
interior da ambulância, colocado na maca, sendo a perna imobilizada.
Chegam as autoridades,
para realizar o auto, explico detalhadamente o sucedido, a súbita perda de
aderência sem motivo aparente, e que terá uma causa que tem que ser determinada.
A resposta chega em tom enfático
– “Sr. Condutor, não detectamos nenhuns vestígios de alguma substância estranha
no pavimento, afirmando que apenas verificou um pequeno indício de água no
pavimento”.
O que contraponho de
imediato, sem obter resposta.
Já a caminho do hospital,
os bombeiros confidenciam-me que é o habitual neste tipo de situações – Assim a
culpa fica sempre com o condutor, libertando outras entidades de assumirem as
devidas responsabilidades.
Chegada ao hospital.
Breve espera na maca, segue-se a ida ao RX, já com a perna a gritar atenção
para si, a equipe médica analisa os “danos” na perna; fractura no planto tibial
- Terá que ser operado dentro de dois dias.
Informo a minha mulher,
não é fácil, dar notícias destas à família, rapidamente, acorrem ao hospital,
preocupados, tento transmitir calma, sinto a sua tristeza, tenho pena de os
fazer sentir assim por minha causa.
É colocado gesso, sou
transferido para o serviço de ortopedia. Muitos pensamentos correm rapidamente,
fugidios, enquanto o tempo espera e teima em não passar.
Numerosos colegas da
empresa onde trabalho, entram em contacto comigo, de modo a saber como estou, dando
apoio e atenção, com muito necessária energia positiva.
Chega o dia da operação e
com anestesia local, a minha perna é intervencionada com atenção e cuidado, oiço
um berbequim a aparafusar, e lembro-me por breves momentos da oficina do famoso
“Gepeto” a reparar as suas marionetes de madeira.
Decorria assim a cirurgia,
enquanto calmamente falava com a equipa médica que me assistia, enquanto
procurava saber se era bastante comum a existência de acidentados de moto.
- Não; acidentados de
moto não são muito comuns de chegarem até nós. Acabam por morrer antes de
chegarem aqui; dos velocípedes ainda chegam até cá – é a resposta que recebo.
Minuto seguinte, e já estávamos
a falar de restaurantes, e respectivos “reviews” e opiniões, a vida no hospital
é mesmo assim, tal frente de batalha, feita de muitas realidades, em que se têm
que viver pelo meio.
Até a Cinderela e o príncipe
encantado são reais pelo hospital. Mesmo. E nem têm consciência do que estão a viver. Especial
e único, numa magia que pensamos já não existir. Felicidades para eles!!
À medida que os dias
foram passando, depois de alguma luta contra as dores, lá finalmente chegou o
dia da alta, e o regresso a casa, para uma recuperação longa, em pleno verão,
sem sair praticamente de casa, além de consultas de rotina e pouco mais.
Deslocar-se no interior
de casa obrigou a uma nova aprendizagem, além de não ser nada fácil lidar com o
facto de não poder realizar tarefas, dadas como adquiridas até a essa altura.
A recuperação chega a uma
nova fase, com a fisioterapia, logo na primeira sessão, ao meu lado, na mais
pura das coincidências, fica um veterano piloto que já conheço.
Apesar de um acidente
grave, luta em recuperar contra as dores, de modo a ocupar o seu lugar na sua aeronave.
Fui conhecendo por lá, todos
aqueles que foram sofreram os mais diversos tipos de acidente, das mais
diversas situações, num ambiente de simpatia, difícil de imaginar, dado o
local.
Não sei se terei a
oportunidade de voltar aos “ferry flights” sinceramente. Só o tempo o dirá.
A vantagem da incerteza é
que dentro de si cabe literalmente tudo.
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