quinta-feira, 6 de junho de 2013

Espiral Sedutora


 
 
 
 
 
 
 
 


Sem demora…podem acompanhar-me os dois ao meu gabinete?

Mau…quem é que terá feito asneira da grossa? O Sr.º Comandante não é grande apreciador estas reuniões não agendadas…bem vamos ver o que será, penso para mim.

Uma pasta côr de laranja sai de uma gaveta, pela mão do comandante, e aterra suavemente na sua secretária.

Nunca tínhamos visto nada daquilo, o co-piloto mostra uma expressão de espanto assim como eu.

Lutando para não recorrer aos óculos, O Sr. Comandante no seu tom calmo e imperturbado, informa-nos da necessidade de uma missão que nem a mente mais imaginativa, depois de algumas cervejas do clube de oficiais conseguiria elaborar.

- Meus caros...dirigindo-se a mim e ao co-piloto, com um tôm de dúvida na voz, nunca ouvido por nós, em qualquer ocasião.

-Partem amanhã. Logo ao raiar do dia; o vosso plano de voo aprovado, é para um aeródromo próximo, mas na realidade o que irão realizar é um voo de reconhecimento extenso, sobre as regiões ocupadas pelo inimigo, de modo a averiguar a utilização das unidades fabris no esforço de guerra que é dirigido contra nós.

É verdade, não estranhem o facto de verem a vossa B-17 sem quaisquer marcas relativas ao esquadrão e à nacionalidade. Caso sejam detectados poderão usar essa mais-valia em vosso favor, e ao que parece também o tempo vós irá ajudar –Do que sabemos a Europa está mergulhada em gelo, coisa pouco habitual no final de Março.

Lembro-me do que pensava após a última surtida, da espiral de dificuldade crescente, das missões, onde só um risco superior parece motivar toda a tripulação e inclusivé eu.

-Tem perguntas?

Interrompe-me o pensamento a pergunta do Sr. Comandante, já à espera de um silêncio na resposta, da minha parte e do co-piloto, até que ouvimos – Bem…assim sendo, boa sorte para vocês e toda tripulação…ao menos esta missão é como você gosta….sem objectivos demarcados onde têm que lançar bombas… tenham cuidado.

Logo de madrugada, sai toda a tripulação em direcção à aeronave, em silêncio, a B-17 está limpa de qualquer bomba, têm apenas o estritamente necessário para a sua defesa.

No porão das bombas está agora instalado um “pack” de reconhecimento, ou seja um conjunto de câmaras e respectivos rolos fotográficos.

As guerras deviam ser travadas apenas assim…como fotografias…quem tivesse as fotografias mais interessantes, ganhava; sem mortos ou feridos - penso para mim.

O pessoal do reconhecimento aéreo esse sim…o seu lema diz tudo…”alone-sozinhos” “unarmed - desarmados” “unafraid – sem medo” quem me dera estar nessa esquadra…

-Epá!! Vocês vão sozinhos ver se caçam umas“pin-ups”?? - Diz um dos mecânicos…todos sorrimos mas ninguém responde.

Voamos agora por uma outra rota, minha velha conhecida do tempo dos caças, de nome IP5, muitas vezes fatal devido aos muitos abusos que lá se cometiam.

Agora é praticamente uma auto-estrada, sem surpresas de maior, tirando o facto de termos sidos depenados, com simpatia, numa das suas áreas de serviço, por umas frugais refeições sem qualidade nenhuma, ao contrário da tradicionalmente rica culinária da zona.

Segue-se Espanha, o trânsito, apesar de se tratar de uma via internacional, é escasso; o nosso objectivo é chegar à França livre, a Biarrtiz.

-Nem devemos apanhar mau tempo…diz o co-piloto perante os relatórios da meteorologia tivemos acesso antes da partida.


Prestes a chegar a San Sebastian, e já de noite, a temperatura exterior cai, mas nada de muito preocupante, algumas placas luminosas alertam para a possibilidade de gelo.

Um estranho ruído parece vir agora debaixo dos pneus, parece que partimos tal açúcar queimado em leite de creme.

A temperatura exterior aproxima-se dos 0ºc, e com ela um conjunto de curvas ziguezagueantes bastantes fechadas, a direcção da B-17 torna-se demasiadamente leve, com uma tendência de querer seguir em linha recta de acordo com o que a gravidade impõe às suas 3,5 toneladas.

-Gelo…a estrada está cheia de gelo…tá bonito…primeiras horas da missão e já apanhamos uma dose destas…comento com o co-piloto.

Conseguimos chegar a Biarrtiz, ao pequeno aeródromo da França livre, onde se acotovelam várias dezenas de aeronaves, das mais diversas nacionalidades.

Um dos equipamentos está completamente“INOP”(inoperacional) o modo de funcionamento do frigorífico a gás – se tivermos que parar sem fonte de alimentação de corrente eléctrica externa, as nossas provisões estragam-se num instante.

-O que vale é que em andamento, a B-17 sempre lhe fornece a energia necessária para o frigorífico a funcionar …menos mal, - diz o co-piloto.

Os sucessivos cortes de manutenções começam a fazer-se sentir…às vezes as coisas“pequeninas” põem tudo o resto em causa, quando menos se espera; a janela do meu lado recusa-se a abrir; mas como está frio não faz diferença.

Atravessamos França, por uma sucessão de estradas, em que já reconhecemos determinadas localidades, e casas inclusivé, de outras missões.

Surge o som de uma sirene de polícia da nossa cauda. Faz-nos indicação para parar um carro à civil. Encostamos para descobrir que argumentam comigo que desrespeitei um sinal vermelho. Não pode ser, não fiz isso.

No final, já o polícia, dizia que afinal tinha sido Laranja…que tinha pena, mas tinha que ser. Lá ficou na minha caderneta de voo; se achasse que foi merecida nem dizia nada…mas assim…têm um sabor amargo.

De fugida às pesadas portagens Francesas, o percurso é obrigatório pelas estradas nacionais.

Passamos por algumas pequenas localidades, subitamente o indicador de temperatura exterior (único extra que tivemos direito para esta missão) dispara um pequeno alarme sonoro, sempre que a temperatura atinge os 0ºc.

Progressivamente parece que algo choca contra o pára-brisas sem ruído. Passo as luzes para máximos e a intensidade desse fenómeno é enorme, chuva não é.

Parece que estamos no espaço sideral, no meio do vazio, presenciando um fenómeno completamente novo, sem saber como reagir.

O indicador de temperatura exterior soa agora o seu alarme quase em contínuo, e o co-piloto já pragueja cada vez que apita, recordo-me da formação básica de vôo.. – Atenção á formação de gelo !! -Dizia-nos à altura o instrutor.

Tiro os olhos do horizonte, e olho para o canto inferior esquerdo do pára-brisas, com ajuda de uma pequena lanterna

Gelo; quase translúcido, brilha perante a luz da lanterna, contra a escuridão absoluta do exterior.

Volto a desviar o olhar para a estrada, tinha mudado de forma instantânea da côr negra para o totalmente branca.Um poderoso nevão se faz assim sentir.

Desaparecem assim todas as referências do percurso; marcações da estrada, bermas e limitação de faixas; e a estrada continua a subir.

Os pneus começam agora a perder tracção e o peso da B-17 parece que está agora em cima das costas de todos nós, tripulação, no interior da sua fuselagem.

Coladinhos à nossa traseira, alguns pequenos utilitários procuram um apoio que não posso dar para sair dali, a sensação de perda de tracção dos pneus intensifica-se, viro-me para o co-piloto e digo-lhe: É agora. Desta não nos safamos.

Surge um túnel. Ganha-se tracção novamente no seu interior, à saìda, uma pequena rotunda, para a contornar, carrego no travão para perceber, pelo longo deslizar que senti, que afinal estava num navio, veículo que não conhece travões, em que a sua massa se impõe inexoravelmente, contra o que possa surgir a sua frente.

Já só queremos uma auto-estrada. Nada mais. Até pode custar 200 euros. Não faz diferença, tudo é melhor do que aquilo.

Encontramos uma entrada para a auto-estrada.

Estamos safos... agora é só encontrar uma área que dê para dormir…

Mas não surge qualquer área de descanso, e a neve aumenta em quantidade.

Desaparece da via em que circulamos, primeiro a berma, depois a faixa da direita debaixo de um enorme manto branco.

Só a faixa da esquerda permanece aberta, graças a uns solícitos limpa neves que teimam lutar contra a neve.

Graças a eles, conseguimos alcançar uma zona de altitude mais baixa, finalmente livres da neve.

-Missão de reconhecimento...nunca em combate apanhei um número destes…pior que isto só quando fui abatido no meu caça; afirmo perante o ar espantado do co-piloto.

-Estas fazem mossa. Acredita que sim; um dia em que tiveres uma aeronave e toda a tripulação à tua responsabilidade vais ver o que é. Acredita.

Na manhã seguinte, pela altura do pequeno-almoço, as notícias que aquela região –Aurillac (nome que ficou gravado na minha memória) tinha sido vítima de uma intensa tempestade de neve deixando muitos habitantes sem electricidade.

-A zona mais fria de França !! Assim um Francês a definiu para nós, já muito depois do sucedido.

Por entre montanhas e vales pintados completamente de branco, sob um céu azul alvo da minha maior atenção, em que qualquer agravemento das condições climatéricas, era no mínimo a repetição do que já havíamos experimentado e que não deixou saudades.

Na estrada sucedem-se os avisos em forma de sinal de trânsito, alertando para a obrigatoriedade de equipamento para neve a bordo de todas as viaturas – Algo totalmente inexistente na nossa B-17, de modo a não levantar suspeitas sobre o verdadeiro teor da nossa missão, aquando da partida.

Conseguimos alcançar a simpática Turim.

Os seus“Carabinieri”desbordam-se em esforços para ajudar a localizar um aeródromo onde possamos poisar.

Com uma localização fantástica, o parque de campismo, mostra afinal, que um aeródromo e muito mais do que apenas boas infra-estruturas; a simpatia e a solicitude de quem o mantêm é algo igualmente importante.

Após o jantar vamos até a messe do aeródromo. Pensei estar num filme de Felini, onde dois irmãos gémeos, que facilmente se denotava oriundos do leste, com os seus trajes à anos 70, ensaiavam números de magia para uma multidão de 5 pessoas.

Imperdível, conforme um dos “Carabinieri” me disse, o Museu do Egipto. Na sua ampla sala de estátuas somos de imediato transpostos para outra realidade, tais exploradores da romântica década de 20 do século passado.

O único parlamento sobrevivente das cidades estado italianas encontra-se em Turim, igualmente. Contêm o segredo como a Europa deve subsistir. Única igual a si mesma com todas as diferenças nas mais diversas áreas. Não um estado gigante acéfalo, onde algumas nações oportunistas tentam vincar o seu poder, como já o tentaram fazer no passado pela força das armas, valendo-se na actualidade da economia.

Partimos em direcção a Milão, algumas placas de direcção na estrada indicam o lago Maggiore. Convicto que se trata de um dos locais de filmagem de uma parte da saga do agente 007, vamos até lá.

Mas não encontro nenhum daqueles dos locais que esperava. Na realidade enganei-me no Lago, seria afinal o lago de Colmo. Entramos em Milão de noite, e o parque de campismo teima em não aparecer.

A noite avança, junto aos semáforos e rotundas de Milão, a sedução é forçada a ganhar sustento para algumas pessoas, à troca de um prazer esquivo para outras.

Chegamos a perguntar a direcção do parque de campismo, a uma actriz desta encenação dramática, que atenciosamente nos informa não conhecer o tal aeródromo.

Optamos por uma área de serviço, algo nada aconselhável, festejamos quando ao acordar, vemos que está tudo bem.

Lá conseguimos alcançar o parque de campismo, até têm uma mini quinta com animais, onde um déspota pónei aterroriza os outros animais se alguém tenta dar comida senão a ele.

O pessoal apercebe-se da situação e o pónei é literalmente deixado a ver navios como feitios assim bem merecem.

As famosas galerias Vittorio Emanuele são imponentes, dignas de uma visita, a Catedral Duomo transporta-nos para uma gigantesca escala do gótico, sem igual.

Chove sem perdão, enquanto um verdadeiro rio de gente, totalmente diferenciada em todos os géneros, percorre as arcadas junto a catedral do Duomo, por segundos parece que reencontro à distância de um braço, a mulher dos cabelos cor de fogo de uma outra vivência que dista já 20 anos, em segundos deixo de a ver, no turbilhão do rio de gente.

Mergulhamos no interior de uma cuidada galeria comercial, muita oferta de produtos, de elevado preço e qualidade, depois de uma selecção de “preços light” dirijo-me à caixa para efectuar o pagamento.

O ticket das compras que recebo, pinga uma sedução açucarada por todas as pontas, que deixa lembrança, muito além do fugaz momento.

Deixamos Milão; a vida por lá é puxada financeiramente, para quem é de fora, no seu centro histórico ainda ensaiei uma pequena contra mão, não tendo reparado num sinal de sentido proibido do tamanho de um prato de mesa, valeu-me o pronto aviso dos Milaneses, mesmo assim com um sorriso para mim perante o erro que cometia.

Alcançamos o Mediterrâneo, deixando a neve definitivamente para trás. O Mónaco acessível tal Cascais a partir de Lisboa em comboio, a partir de Ventimiglia.

A dimensão é totalmente diferente aquando da nossa primeira visita. Os Monegascos são afáveis e simpáticos, da experiencia que tivemos.

Junto ao seu sobejamente conhecido casino, dormitam viaturas imponentes, numerosos turistas apressam-se em direcção as mesmas, para uma foto junto a essas viaturas, não necessariamente as mais belas, de apuro técnico ou raridade, apenas estandartes do poder da força bruta do dinheiro.

Claro que as viaturas míticas também se encontram por lá, mais trabalhosas de encontrar, estacionadas numa qualquer rua estreita, tal utilitário, esquivas, difíceis de apanhar em foto, perante a surpresa que causam.

A descontracção e ambiente, que os adultos das mais diversas origens encontram no café de Paris, só encontram um termo de comparação com a experiência vivida pelas crianças na Disneylândia. Confesso.

Segue-se a tentativa de atravessar França o mais rapidamente e economicamente possível, o cansaço acaba por se impôr em Narbonne, e uma área de serviço é a solução encontrada para ganhar algum descanso.

De manhã estranho a desarrumação do porta luvas do co-piloto, mas é habito os artilheiros virarem tudo do avesso aquando das paragens. Escotilhas dianteiras abertas…hummm…queres ver que alguém se as esqueceu de fechar durante a noite??

Não..na realidade fomos “visitados”…ou seja roubados, mas de uma forma cuidada e discreta, que até de mim mereceu um elogio–extremamente profissional.

A fechadura de uma das portas foi aberta de tal forma que parece que tinha sido aberta pela própria chave- sem nada forçar.

Vêm-me à ideia que podíamos ter sido “gaseados” – o termo é mesmo este; é comum os assaltantes recorrem a um gás narcótico colocarem todos os que se encontram no interior de uma viatura a dormir profundamente e assim "limparem" tudo aquilo que desejarem tranquilamente, como tantas tripulações já nos informaram terem sido vitimas.

Mas não temos sintomas disso, e tirando uma carteira (que tinha sido comprada na viagem, sem nada no seu interior) não levaram mais nada.

-Epá !! Esta é grave! Não termos acordado com uma lâmina de uma faca no pescoço foi uma sorte!! Imagina que deitam as mãos aos livros de código das comunicações…não estás a ver a gravidade da situação…-digo para o co-piloto.

Atónito, não consegue dizer nada. Admira-se apenas não terem levado mais coisas; recorda que durante a noite, sem aviso, o artilheiro de cauda, deu um pulo para cima do seu peito, o que o fez refilar de uma forma estremunhada, mesmo com todo o cansaço.

Foi o membro mais novo da tripulação quem nos safou. Chegamos à conclusão. De sono leve, o seu instinto felino deve ter ouvido algo que o fez pular sobre o co-piloto e assim, o alvoroço afastou os assaltantes.

-Mesmo apesar de voarmos longe das rotas mais utilizadas, e com horários totalmente descentrados e evitando sempre
 grandes aglomerações populacionais…podemos sempre ser caçados...

Arrancamos dali. Em direcção ao Aeródromo de Biattriz, que conseguimos alcançar, onde fora de horas, tal nós, há uma semana, chega uma aeronave Espanhola, sem um local onde parquear.

Agarro nas lanternas e imediatamente vem na minha direcção; arranjo-lhe um sítio junto ao nosso “spot”, e pergunto-lhe se precisa de electricidade.

-Era ideal !! responde-me o seu capitão. Lá se consigo que receba a tão desejada corrente eléctrica de modo a terem uma refeição quente. Nada mais recompensador para mim na manhã seguinte, os sinceros sorrisos de todos os membros da sua tripulação.

O sol brilha pela manhã, o calor torna-se verdadeiramente insuportável no cockpit devido a janela avariada…se isto era no verão, seria bonito….

De uma tirada apenas, alcançamos a nossa base, já pela madrugada, que acorda em grande alvoroço perante a chegada de uma aeronave não agendada. O artilheiro de cauda não quer sair da B-17, ainda me lembro na sua primeira viagem como procurava um qualquer recanto escuro que o fizesse esquecer onde estava.

A missão de reconhecimento elevou o desafio. Exigiu e deu.

Algo que nos dias de hoje, está totalmente em desuso, perdidos numa cultura de limbo, esquecendo o dever exigir, mas também o de dar.

 

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