quinta-feira, 23 de junho de 2011

A felicidade da dificuldade















A sociedade evolui de formas estranhas.

Curioso verificar que, por vezes essa tentativa de evolução é na realidade uma regressão.

Suprime-se o sentido de responsabilidade, de dever, e de sacrifício, num clima de “imortalidade” perante tudo e todos, que afinal sempre tropeça na inevitabilidade de uma qualquer situação complexa, podendo assumir as mais diversas formas.

Perante a total ausência de crenças, tenta-se a sua substituição pela tecnologia que tudo pode e tudo realiza.

Nada mais errado.

Nos meados dos anos 80, os automóveis disponibilizaram a travagem ABS, mais segura em situações de emergência.

O que sucedeu de imediato foi um aumento do nº de acidentes, pois os condutores, convencidos que o referido ABS tudo podia fazer, acabavam por travar além do limite do próprio sistema, convencidos que poderia fazer o impossível.

Lidamos cada vez pior com as dificuldades (ou a sua possibilidade) pois “fizeram-nos” esquecer como viver com essas situações.

O momento é assim de aprendizagem, de um reinício, para que assim possamos verdadeiramente evoluir como pessoas e como um todo.

Senão a evolução não existe, é apenas uma palavra vazia, desprovida de conteúdo.

Por vezes acontecem algumas reuniões festivas na messe.

O pessoal consegue descobrir um aniversariante, que no dia de anos, se vê obrigado a ter que pagar algumas bebidas ao resto do pessoal.

Aconteceu há pouco tempo.

É claro que pelo meio de todo o clima festivo, o pessoal de várias esquadras tudo comenta.

Reparo que o co-piloto fala com um congénere seu, de uma outra esquadra.

Ao que parece o comandante de esquadra terá dito que a B-17 iria partir, em breve, em missão com uma tripulação de maçaricos.

O co-piloto, que desde há bastante tempo aguarda pela “missão que ninguém sabe nada” muda o seu tom de voz, subitamente, ao saber do sucedido.

Ferve um pouco com a situação, e no dia seguinte já estava no gabinete do comandante a pedir uma explicação.

Dado o quase (parentesco) familiar entre o co-piloto e o comandante da esquadra – ao que parece o pai do co-piloto foi camarada de armas do comandante, num outro conflito; é lhe assim permitida esta veleidade.

Nada de grave, afinal. Os planos de missões são elaborados de acordo com a disponibilidade conhecida, podendo sempre ser alterados, caso apareça uma missão prioritária, e assim lá fica um pouco mais tranquilo.

Ao saber do sucedido, comento com o co-piloto que têm que compreender a necessidade de formação de novas tripulações, e que é normal que tal suceda.

- É tudo muito bonito, mas se corre alguma coisa mal, quem fica no chão somos nós – afirma; ciente no entanto, que tal deverá suceder.

Alguns dias atrás, agarramos no “pequeno Willys” e fomos até ao Hangar, com surpresa, o co-piloto vê uma outra aeronave, um modelo bem mais antigo parqueado junto à B-17.

- Mas que raio é aquilo ?? Até vêm equipada com um barco em cima ?? Risada geral.

Tratando-se de uma aeronave mais antiga, tinha um visual bem peculiar, e o riso do comandante da esquadra, (de boleia convosco no Willys) é um daqueles “micro-momentos” em que tudo está bem, em felicidade.

Não são raros estes momentos, ao contrário do que se julga; Recentemente, um dos artilheiros apesar ainda muito jovem , capta toda a essência, quando vê numa pequena festa, numa vila dos arredores da base, um cardápio, com a indicação “javali na grelha”.

Logo afirma – Nós também já íamos tendo “javali na grelha”... Numa clara alusão à ultima missão, onde em plena estrada, um enorme javali, atravessou à nossa frente e por milímetros, não lhe acertamos….

Surpresa total foi também, um destes dias, ainda na camarata, quando me alertam que estou a ser chamado à sala de comunicações.

- Assim que lá chego, informam-me que tenho uma comunicação via rádio à espera.

Assim que me sento frente ao rádio, oiço : - estou parado aqui num campo, um dos motores calou-se e tive que aterrar.

Era o comandante de esquadra; Era suposto juntar a B-17 a algumas outras aeronaves para efectuar uma promoção de “títulos de guerra” junto de civis, mas a falha de um dos motores deixou-o apeado.

- Não se preocupe, já aí vou ter consigo. Agarro no pequeno caça, e rapidamente estou junto ao (muito desalentado) comandante e sua B-17.

- Acendeu-se esta luz no painel de instrumentos, e começou a falhar o motor três…. Por acaso consegui aterrar aqui…

-Não se preocupe afirma, em tom confiante; - é manha da menina, já resolvo isto.

Após uma mexida nos cabos que alimentam as velas do motor 3, a luz desaparece do painel e parece estar tudo bem.

A B-17 levanta voo à minha frente, e eu seguidamente, na sua cauda. Passados breves minutos e está novamente à procura de “poiso”; Parece que está com problemas outra vez.

Pousamos e repetimos o processo novamente; o desalento cresce exponencialmente na cara do Sr. Comandante que quer voltar para trás, e no mínimo, pregar um processo disciplinar a todo o pessoal de manutenção.

Na última paragem, um civil acercou-se da aeronave, e bastante solícito, disponibilizou a sua ajuda, descobre um spray muito gasto, mais muito útil na mala do seu carro, e mais uma vez levantamos voo, apesar do Sr. Comandante me garantir que vai voltar para trás, de regresso à base.

Entro em “negociação” com o Sr. Comandante, e caso volte a suceder mais falhas no motor três, estamos os dois de regresso.

Mas não sucedem outras falhas no motor,  e paramos tranquilamente para almoçar.

Categórico, o Sr. Comandante, afirma que apesar de não ter falha no motor três, vai regressar.

A quase totalidade da refeição foi passada a descrever ao Sr. Comandante o que era voar sempre com o “espectro” de falhas de motor (e outras mais...) sob território inimigo, sujeito a tudo e mais alguma coisa, presa fácil de um qualquer caça, nas mais altas horas da noite, no desconhecido.

- Qualquer solavanco que sentimos em pleno voo… acredite que estamos sempre à espera de tudo.

- Temos que viver assim e enfrentar a situação diariamente.

-Vocês ainda são uma tripulação, eu não - Contrapõe o Sr. Comandante, continuando.

-Como verificou, venho sozinho na aeronave. Não tenho tripulação disponível – Cada vez somos menos e e os recursos materiais são também cada vez mais escassos, decerto compreende que é complicado para mim.

- Acredito que assim seja.

- Deixe então lembrar-lhe o que sucedeu aqui comigo no inicio na esquadra, afirmo.

 - Na primeira missão com a B-17, ao efectuar a inspecção pré-voo descobri uma enorme fuga de combustível, e como se lembra recusei-me entrar dentro da aeronave, quanto mais partir em missão, perante o desalento de toda a restante tripulação.

Chamou-me ao seu gabinete, e apenas me pediu: - Faça isto por mim, por favor.

E assim fiz, e assim voltei a voar. Graças a si.

-Agora só lhe peço o mesmo. Nada mais.

A B-17 levanta voo a minha frente, após o almoço de saída do aeródromo, em direcção à estrada.

Uma bola de fumo preta sai dos seus escapes, mas parece que está tudo bem.

Em formação cerrada acompanho-a até a entrada da autoestrada, já em rota para o seu destino.

Efectuo uma saudação ao Sr. Comandante, ponho a ponta esquerda da asa do caça em baixo, e volto para trás enquanto a B-17 se encaminha para o seu destino.

Reaprender a viver com os problemas, com as dificuldades, é um destino que temos que alcançar, nesta aprendizagem que é a vida.

Verás como muda a tua atitude, quando esse destino alcançar; Uma riqueza única, bem acima de qualquer valor material.

Liberta-te assim da falsidade de uma sociedade que tudo quer sem dificuldades, ou responsabilidades, mas que não consegue impedir que as dificuldades surjam no teu caminho, deixando-te sem preparação para as venceres.

Com a tua atitude, em qualquer que seja a situação podes fazer a diferença.

Para ti e para a humanidade inteira.

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